O que sobra de um abuso
Na semana que se passou, um assunto martelou muito na minha cabeça. Esse pensamento foi tão profundo dentro de mim que mexeu com meus sentimentos, com meu passado e com meu presente, e sei que ainda vai mexer com meu futuro enquanto eu não me abrir mais para um/uma terapeuta que possa me ajudar de coração aberto e respeito. Eu não sou nada popular na internet, mas tem umas 100 pessoas que vêem meus stories e em maioria são mulheres.
Fui ao instagram e abri uma caixinha de perguntas pra saber com qualquer pessoa que visse meu story o que a pessoa achava que sobrava depois de um abuso, seja abuso emocional, físico, psicológico, sexual, etc. Sinceramente achei que não ia obter muitas respostas, ou respostas que chegassem próximo ao que eu senti e sinto até hoje, mas vi algumas respostas que condiziam com algo bem similar ao que sinto. Eu seria bem infeliz em dizer que fiquei "feliz" por ter lido aquilo tudo e ter me identificado com o sentimento de algumas pessoas que estão no mesmo círculo de convivência que eu (mesmo que essa convivência seja somente virtual), mas me senti representada em cada pessoa que me respondeu.
Então, antes de começar a escrever o que realmente tá entalado na minha garganta, na minha alma e no meu coração, eu vou deixar aqui as respostas que recebi (para você que talvez venha a ler, analisar se já passou por algo parecido ou se se sente assim e poder identificar algo que possa estar te fazendo mal):
"Medo, insegurança de sair na rua..."
"Pedaços soltos, você se despedaça inteira ao ponto de não se reconher mais, e por mais que você tente catar esses pedaços, não é como antes, a sequela é para sempre. O que sobrou de mim foi pouco, claro que estou melhor, mas não sou mais a pessoa de antes."
"Uma casca que precisa ser repreenchida..."
"A baixa autoestima. Tenho inseguranças com o meu corpo por causa de abusos."
"Cacos."
"Nojo do nosso corpo, vergonha das pessoas."
"Insegurança, medo, baixa autoestima e muita, muita ansiedade."
Acho que depois que vi tantas respostas que achei similar a sentimentos que eu tive, senti mais coragem pra escrever o que eu vinha pensando há tempos. E vamos ao que interessa.
Meu texto hoje é dedicado à Alice* e à Jeysa*, moças que como eu foram vítimas de um mesmo homem. Achamos que ele nos amava, que ele queria construir uma vida feliz com a gente, que o que tínhamos em comum fosse nos levar a ter uma vida duradoura juntos, que as noites de sono de sábado valeriam a pena quando viesse o café da manhã de domingo e que até fôssemos casar um dia. Mas nada disso aconteceu, nem comigo e nem com a Alice e a Jeysa...
Sempre que eu ouvi falar de abuso sexual, era pela TV, o tipo de coisa que você fica perplexa e não imagina que um dia vai acontecer com você, porque você se acha inteligente demais pra não cair nos papos idiotas de homens que só querem saber de sexo. Só que não foi assim. Eu tava sozinha no começo de 2017 e Glauco* morava perto da minha casa. Nos demos tão bem desde o começo, nos víamos com frequência pois passávamos pelo mesmo caminho quase todo dia e começamos a nos falar pessoalmente, por telefone mas sempre com uma condição por parte dele: que ninguém soubesse que a gente se encontrava, e se algum dia a gente saísse, que ninguém soubesse. De cara eu não via problema nenhum, mas um dia aleatório ele me contou que foi acusado de estupro pela Alice, a ex-namorada que um dia ele pretendera pedir em casamento. Como era a primeira vez que alguém abria o coração assim pra mim, eu ouvi com toda atenção, paciência e empatia, pois não sabia o que realmente tinha acontecido. Ele sempre foi cheio de detalhes, então acreditei que fosse verdade pois não conhecia nenhum amigo dele a ponto de perguntar se foi realmente verdade, aquela história de "vou dar esse voto de confiança" sabe?
Ficamos por quase 3 meses sem ele me dizer exatamente o que queria comigo e eu sentia algo esquisito por dentro (talvez fosse minha intuição dizendo algo?) e pedi ajuda ao meu terapeuta na época, ele disse que eu tinha que estabelecer eu mesma um limite de até onde eu poderia esperar e quando não mais, eu avisaria ao Glauco. Nem imaginava que eu teria que dizer adeus à ele, mas eu disse, porque as coisas não saíam da mesmice (ele tinha se acomodado, talvez?), mas não deu 1 semana e ele marcou um encontro comigo e me pediu em namoro.
Eu lembro que fiquei muito feliz, mas mal sabia que ia sofrer tanto nos meses que viriam.
Lembro quando disse à minha irmã que estava saindo com o Glauco, ela perguntou qual era o signo dele e eu disse "aquário", minha irmã num ato de espanto reagiu rapidamente dizendo "corre dele, é cilada". Eu nunca fui de acreditar muito em signo, mas depois desse relacionamento, fiquei muito insegura com pessoas desse signo (inclusive fiquei com outro rapaz de aquário e ele era complicado, mas não abusivo). Glauco era MUITO difícil de se comunicar, e dizia que sempre que conversava comigo achava que eu estava brigando, a ponto de blefar dizendo que procurava as amigas para pedir amparo e conselhos sobre o que fazer quando eu falava com ele daquele jeito, fato que foi comprovado como real blefe no final de 2022 quando uma ex-amiga dele, amiga da Alice, me procurou falando que ele nunca tinha conversado com ela sobre mim. Mentiroso.
Em alguns momentos eu o percebia autoritário na forma de falar, mas não sabia que isso me deixaria mal algum dia e isso era sempre a sós, entre eu e ele. Quando estávamos entre a família dele, tudo parecia tão perfeito, a família dele fazia eu me sentir da família também e nunca tinham me tratado tão bem assim. O nosso relacionamento ficou variando entre pequenos momentos em que ele aparentemente estava me entendendo e quando ele não me entendia e claro, eu sempre tinha que pedir desculpas por algo que eu não sabia o porquê, porque do nada ele ficava esquisito e dizia que eu parecia estar brigando com ele enquanto eu só falava normal, tentando sempre me aproximar.
Uma coisa que talvez seja interessante eu lembrar: Eu e Glauco morávamos bem perto um do outro e isso me fez pensar que seria bem mais fácil da gente se ver, fosse a constância ou matar a saudade pelo menos por meia-hora em um dia qualquer da semana. Mas não foi como eu pensei. Um certo dia precisei fazer um exame um pouco invasivo pela manhã (que precisava tomar medicamentos) e a noite tínhamos uma festa junina do meu trabalho pra ir e foi super divertido, até eu começar a passar mal por causa dos medicamentos que havia tomado pela manhã; ele me deixou em casa e eu pedi que ele ficasse porque eu estava passando mal, mas ele não acreditou em mim. Dentro do nosso relacionamento, pior que essa noite, só a noite que aconteceu o abuso.
Eu ainda não sei se devo chamar de abuso, ou de estupro, mas que houve uma violência, houve e só soube quando compartilhei com amigos na faculdade, anos depois de acontecer. Lembro que até fiquei com vergonha quando um dos meus amigos olhou pra mim e disse "amiga, você sabe que isso foi um estupro, não é?". Eu não sabia, e ainda não sei, mas sei que houve uma relação em que eu não quis que acontecesse mais e ele não se importou comigo, ele não olhou pra mim, não se importou com meu bem-estar, com leveza, com carinho, com amor, com nada do que ele dizia sentir por mim. Eu me senti invadida violentamente, como se eu fosse assaltada de mim mesma, triste, vazia e até chorei no momento, não consegui falar nada. Mas senti que estava perto do fim e estava. Não queria que uma violência sinalizasse o começo de um fim, mas foi isso e o nosso relacionamento acabou da pior forma: ele me expondo pra irmã dele em uma briga que tivemos pelo celular, onde ele ligou o celular no viva-voz enquanto discutíamos e ela ouviu tudo. Nesse dia eu tava operada de 2 sisos, doeu muito.
Já tinha tanta dor acumulada dentro de mim que eu não sabia mais discernir o que tinha sido violência psicológica, sexual, emocional e na época eu tinha deixado de ir pra terapia porque queria me mostrar uma pessoa forte, já que ele dizia que era forte sem terapia e eu queria demonstrar que era também; não queria me mostrar inferior porque perto dele, ele me inferiorizava de alguma forma, fosse pros amigos conversando sobre algo que eu não sabia e me deixando de lado, fosse saindo pra algum lugar que eu não conhecia e sendo breve, não me tratando com carinho ou me tratando com estranheza, como se eu fosse descartável. A sensação era bem essa, descartável.
Foram 8 meses disso tudo + 1 mês de luto que eu cheguei a deitar no chão chorando, de tanta dor no peito que sentia e lembro de bater na porta do vizinho da frente pra pedir um abraço a qualquer um que tivesse em casa, porque não aguentava sentir aquela dor sozinha. Depois daquele dia, eu prometi a mim mesma que me daria férias de relacionamento sério, porque tinha medo do que poderia acontecer, de encontrar alguém parecido, de sofrer alguma violência novamente, mesmo que eu não soubesse que aquilo havia sido uma violência. E voltei pra terapia. Algo que ainda tento descobrir é se o que eu sofri (e o que a Alice e a Jeysa também sofreram) vem mexendo na minha autoconfiança, em questão de relacionamentos, porque sempre que conheço alguém, tenho a impressão que a pessoa só quer algo sexual comigo e que vai logo me descartar, porque eu tenho 99% de certeza que o Glauco só ficou comigo por sexo e saber disso não me deixa mais tão mal porque eu mantive a terapia desde aquele fim até hoje, mas não havia tocado nesse assunto.
E afinal, o que sobra de um abuso (que é o que eu penso que passei)?
No meu caso, sobrou algo da minha vida que eu não sabia como conduzir, que eu me sentia insegura de compartilhar com qualquer pessoa e talvez por isso hoje eu não saiba nomear. Eu ainda penso nisso tudo e marejam meus olhos, mas ao mesmo tempo que isso acontece, eu sinto que é necessário eu tocar no assunto pra pensar que eu tenho que me manter alerta pra não acontecer novamente e também não me autossabotar quando algo de bom acontecer comigo, porque em algum momento algo bom vai acontecer e eu vou merecer sim, não vai ser um castigo e o que aconteceu lá no passado não foi castigo, foi uma pessoa ruim que passou pela minha vida, que é totalmente diferente dos pais e da irmã e que a família talvez nem imagine que ele é uma pessoa ruim como foi comigo e com as outras meninas (talvez tenha sido com mais meninas, não se sabe). Dor, dor, dor. E no fundo de tudo, no fundo do poço, a vontade de recomeçar e de ser feliz, mesmo que com vontade de chorar.
O que eu recomendo, pra qualquer pessoa, é o que eu vou fazer: procurar terapia pra deixar minha consciência tranquila, porque nem todo mundo que aparece na nossa vida é pra nos destruir. Eu tenho certeza que em algum lugar nesse mundo existe alguém que será reciprocamente bom com a gente e por ter essa fé e essa esperança, eu vou lutando, fora que eu tenho amor à mim mesma também! Eu sei que existem mulheres que não tem força pra lutar contra esses males que acontecem, que acham que não tem força suficiente, que se sentem só, mas elas não estão sozinhas! Soube que a Alice encontrou um namorado maravilhoso e desejo que eles sejam sempre felizes, ele respeita muito ela e eles combinam em muita coisa, principalmente no amor que sentem um pelo outro. Já a Jeysa, eu espero que ela esteja bem agora, do fundo do meu coração e que no momento certo, encontre alguém que a faça feliz, que possa viver em paz com essa pessoa, sem que lhe dê trabalho e medo, assim como eu espero também encontrar uma pessoa legal. Enquanto eu fico com as minhas energias positivas para mim e as meninas, eu sei que com o Glauco não aconteceu nenhuma punição por ter feito o que ele fez com a gente...
E a você que lê, por favor, se já ouviu uma história parecida, conhece alguém que já sofreu abuso ou estupro, fique do lado dessa pessoa, ela não é culpada, nunca será. Ninguém, por maior que tenha sido seu pecado ou seu erro, merece sofrer isso, passar por isso. Não é só físico o sofrimento, e pode ser pela vida toda, infelizmente. E se conhece algum homem que fez isso, não fique em silêncio, evite que outras tragédias venham a acontecer. Eu sinceramente espero que um dia, não haja alguém pra reclamar mais sobre isso.
Todos os nomes usados com * são fictícios para preservar os nomes reais.
Assinado, Joice.
Antes de qualquer coisa, sinto muito por tudo isso que você, a Alice e a Jeysa passaram, nem sequer consigo imaginar todos os sentimentos, sensações e pensamentos que vocês tiveram e ainda tem relacionados a esse abuso, mas desejo do fundo do coração que passam realmente seguir em frente, não de maneira a ignorar isso, mas a se permitir viver além disso.
ResponderExcluirEm relação ao que sobra de um abuso...Hoje em dia divido muito em duas fases, aquilo que sobrou logo depois e o que sobra hoje. Para não me estender muito, basicamente gostei muito de uma pessoa e deliberadamente ela me fez sentir muito mal, a pior pessoa do mundo, fazia piada sobre a minha aparência aos amigos dela (coisa que fui descobrir meses depois) e mais uma série de coisas comigo e com outras pessoas e o que sobrou logo depois foi um corpo vazio que desejava se esvaziar ainda mais, foi alguém que somatizou tanto tudo aquilo que o corpo precisou dar um alerta de "ou muda ou morre", foi alguém que desejava a morte como quem deseja um copo de agua no deserto, foi alguém que não tinha mais proposito na vida, foi alguém que só acordou quando teve uma hemorragia intensa e precisou ir para o hospital e que era diariamente lembrado de tudo isso porque ficou doente e sentia dores praticamente 24hrs por dia por anos. O que sobrou hoje? Alguém que resolveu nesse tempo deixar de fugir aos demonios e convidá-los periodicamente para jantar, alguém que fez as pazes com o passado triste, que fez as pazes com o corpo e a aparência, alguém que aprendeu a lidar melhor com a doença que desenvolveu em meio a tudo isso e hoje está buscando com uma energia que as vezes nem sei de onde tiro se superar e voar mais alto, alguém que voltou a abrir o coração e acreditar de verdade no amor e que existe alguém por ai no mundo que também quer estar ao meu lado e construir algo solido para toda a vida.
Então essas duas fases são muito distintas, mas ao mesmo tempo são a prova de que existe luz, existe esperança, as coisas não vão ser esquecidas ou ignoradas, ainda tenho lembranças, ainda tenho dores (emocionais e fisicas), se eu cavar lá no fundo ainda existe raiva não apenas pela maneira como ela me tratou, mas como tratou outras pessoas, mas muito acima disso, existe a esperança, a resiliencia e a capacidade de reescrever a história e iniciar um novo capitulo, em branco, mas isso significa que eu posso escrever a história como eu quiser.